quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Agroecologia e a Transição Agroecológica

Jorge Luiz Schirmer de Mattos.

          A agroecologia, ciência ou campo do conhecimento emergente e em construção, surgiu para fazer um contraponto ao paradigma dominante da ciência moderna que se materializou na fragmentação do conhecimento e naquilo que Boaventura de Souza Santos (2006) denominou de “fenômeno global de industrialização da ciência”. Pode-se dizer que o desdobramento deste arcabouço teórico no espaço rural configurou-se num processo conhecido como modernização conservadora, via difusionismo, em que o setor hegemônico da sociedade instrumentalizou a ciência para legitimar a sua dominação. A ciência moderna, ao produzir um conhecimento disciplinar segregou a organização do saber na medida em que foi orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas, reprimindo os que quisessem transpô-las. Isso sem falar no desprestígio que acometeu os saberes não científicos.
          A agroecologia, ao traçar caminho próprio, distanciou-se do engessamento disciplinar e linear e buscou fundamentação na interface com outras áreas do conhecimento (agronomia, ecologia, sociologia, antropologia, educação, economia, comunicação, física, história, etc.) para fundar sua matriz teórica, inaugurando aquilo que poderia ser designado de referencial transdisciplinar (Figura 1).
           A agroecologia, enquanto campo de conhecimento transdiciplinar, ao propor um diálogo de saberes entre o conhecimento local, endógeno, popular e o conhecimento científico rompeu com a idéia de que o conhecimento válido é somente o científico. Em verdade, a agroecologia ao dialogar com outras formas de conhecimento deixou-se penetrar por elas (SANTOS, 2006). Não se trata, portanto, de volta ao passado, mas de reconhecer que existem outras formas de conhecimento e que o saber popular (local), passado de geração a geração também deve ser considerado válido e pertinente em se tratando da construção do campo de conhecimento agroecológico. Para Gusmán (2005), a agroecologia pretende ativar o potencial endógeno, gerando processos que dêem lugar às novas respostas ou façam brotar as velhas, se estas forem sustentáveis.
          Com o advento da agroecologia a visão antropocêntrica de conhecer a natureza para dominá-la, transformá-la e controlá-la perde terreno para a visão ecocêntrica, em que o homem se (re)encontra com a natureza. Ademais, a visão ecocêntrica rompe com a fronteira que se estabeleceu entre o ser humano e a natureza, na medida em que engendra a (re)significação da relação homem-natureza em bases mais sólidas de co-evolução (GUSMÁN, 2006), com perspectivas eco-sociais e eco-sistêmicas. É, portanto, essencialmente relacional, dialógica, interligada indicando que tudo que existe co-existe, que se estende além da ecologia natural englobando a cultura, a sociedade, a mente e o individuo (MORAES, 2004).
          A agroecologia fornece as bases científicas e não científicas, os princípios, os conceitos e as metodologias que orientam o redesenho do agroecossistema na transição agroecológica. A transição agroecológica compreende a mudança de um modelo de desenvolvimento e agricultura industriais para modelos de desenvolvimento e de agriculturas sustentáveis (CAPORAL e COSTABEBER, 2004).





Figura 1 – Representação     esquemática    do    enfoque
                científico   da   agroecologia   e    da   transição
                Agroecológica.    Adaptado    de     Caporal    e
                Costabeber (2004), (MATTOS, 2008).

          O modelo de desenvolvimento industrial de agricultura, concebido com o advento da “revolução verde”, invocou para si o propósito de resolver em escala global o problema da fome e da pobreza no mundo. No entanto, no “mundo em desenvolvimento” a miséria, a escassez de alimentos, a desnutrição, o declínio nas condições de saúde e a degradação ambiental e a concentração de renda continuam sendo problemas (ALTIERI, 2001). Segundo Gliessman (2001) a agricultura em escala global tem sido muito bem sucedida, satisfazendo uma demanda crescente de alimentos durante a última metade do século XX. Todavia, a despeito de seu sucesso o sistema de produção global de alimentos está no processo de minar a própria fundação sobre a qual foi construído. Isso porque as técnicas, as inovações, as práticas e as políticas que permitiram aumentos na produtividade via “revolução verde” também minaram a sua base, com a retirarada excessiva e degradação dos recursos naturais da qual a agricultura depende (o solo, reservas de água e a diversidade genética natural), bem como criaram dependência de combustíveis fósseis não renováveis e ajudaram a forjar um sistema que cada vez mais retira das mãos dos produtores e assalariados agrícolas a responsabilidade de produzir seus próprios alimentos. O desenvolvimento tecnológico nos separou da natureza ao invés de nos unir a ela e a exploração da natureza também se tornou à exploração do homem (SANTOS, 2006). De fato, o crescimento do processo de mercantilização foi de tal ordem, que de uma situação em que a reprodução das famílias camponesas era em grande parte autônoma, passou-se a outra situação, em que a reprodução tornou-se dependente do mercado e não dos agroecossistemas (GUSMÁN, 2005).
          O processo de transição agroecológica transcende os aspectos relativos a produção agrícola e vai além do processo de “ecologização” da agronomia ou da agricultura, na medida em que lhe é incorporada uma abordagem multidimensional: histórica, econômica, biológica, social, ambiental, cultural, educativa, política, normativa e ética (Figura 2).




Figura 2 – Representação esquemática das dimensões da transição agroecológica (MATTOS, 2008).


          O aspecto transicional e o enfoque multidimensional ganham terreno, sobretudo porque o processo de mudança para as agriculturas (de base ecológica) e desenvolvimento sustentáveis requer uma lógica, um tempo de maturação, próprias da agricultura familiar camponesa, que dependem de reflexões e atos essencialmente humanos, culturais, sociais e educativos, para sua efetivação. Isso porque são reflexões e atos constituídos por sujeitos históricos repletos de signos, de sonhos, culturas, desejos, valores e sentimentos de pertença próprios de quem vive na “terra” e faz parte dela. O caráter transicional também ganha terreno porque está consubstanciado em princípios não dogmáticos que se pretendem articuladores de uma sociedade efetivamente sustentável, que implica mudanças de atitudes e valores sempre renovados. Contudo, este processo transicional está longe de ser considerado como algo pacífico, pré-determinado e tampouco pronto e acabado, pois encontra-se sob a disputa de dois projetos de sociedade que geram tensões e conflitos interna e externamente ao agroecossistema. E a depender das opções dos atores sociais envolvidos poderá se trilhar o caminho em direção a modelos mais sustentáveis ou que referendem o modelo hegemônico/convencional (Figura 3).


Figura 3 – Representação esquemática da transição agroecológica (MATTOS, 2008).

          A agroecologia utiliza como unidade de análise o agroecossistema para compreender as possíveis interações entre as partes do sistema e a relação destas com o todo com base numa visão ecocêntrica, eco-social e eco-sistêmica do sistema, em oposição à visão antropocêntrica, fragmentada, reducionista e mecanicista de ciência que privilegia o estudo das partes isoladas do todo do sistema. Diz-se que o agroecossistema é um ecossistema modificado pela ação antrópica (GLIESSMAN, 2001), face ao desenvolvimento da agricultura para se obter produtos/alimentos. Portanto, o agroecossistema é um local de produção agrícola, por exemplo uma propriedade agrícola, um assentamento, uma bacia hidrográfica, mas também pode ser compreendido essencialmente como um espaço de produção-consumo-vida.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 3 ed. Porto Alegre: UFRGS, 2001. 110p.

CAPORAL, F.R.; COSTABEBER, J.A. Agroecologia: alguns conceitos e princípios. Brasília: MDA, 2004. 24p.

GLIESSMAN, S.R. Agroecologia: processos ecológicos e agricultura sustentável. 2.ed. Porto Alegre: UFRGS, 2001. 653p.

GUSMÁN, E.S. Agroecologia e desenvolvimento rural sustentável. In: AQUINO, A.M.; ASSIS, R.L. Agroecologia: princípios e técnicas para uma agricultura orgânica sustentável. Brasília: Embrapa Informação tecnológica, 2005. P.133-146.

GUSMÁN, E.S. Desde el pensamiento social agrario. Córdoba: Universidad de Córdoba, 2006. 288p.

MATTOS, J.L.S. Agroecologia – paradigma emergente. Curso de formação em Agroecologia para Extensionistas do Instituto Agronômico de Pernambuco. Carpina, 2008.

MORAES, M.C. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004. 342p.

SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2006. 92p.

Palavras-chave: agroecologia, transição agroecológica e campesinato


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